Era uma vez... era uma vez. E era
uma vez.. quantas vezes... era uma vez. Às
vezes é que não podia ser uma vez.
Numa dessas vezes encontrei um cão. Era um
cão que falava, como acontece às vezes. Até se podia
dizer: era uma vez um cão que falava.
- Queres dizer-me alguma coisa?, perguntei-lhe.
E ele disse:
- Desde quando é que os cães falam?
Olá, pensei, este é um cão filósofo. Os cães que não ladram são todos
assim: põem-se a pensar. Eu é que não estava para pensar, como ele. Nos
nossos dias, já só os cães é que pensam. Conheci alguns cães filósofos, como
aquele; mas nenhum me tinha feito perguntas.
E comecei a minha história: era uma vez um cão filósofo. O cão era preto.
- Como te chamas?, perguntei-lhe.
- Cão.
- Olá! Um cão que se chama cão!
- Assim não, cão, disse-lhe eu.
E ele ladrou-me. Não se pode falar a um cão como se ele fosse um cão.
Um cão só é cão quando rói um osso. Também podia começar de outra maneira:
Era uma vez um cão que roía um osso. Mas então seria apenas um cão; e o
meu cão era filósofo. Eu é que já não sabia o que pensar. E para ver se ele
pensava, perguntei:
- Desde quando é que os cães falam?
O cão ficou a pensar. Quando um cão pensa, parece que está na Lua.
- Tira as patas da Lua, disse a dona do Universo. Não vez que não
limpaste as patas?
Bom, pensei: aí está... porque é que a lua está tão suja, quando é noite de
Lua cheia. Foi um cão que lá pôs as patas, e depois se deitou. Mas o que é que
queriam? Um cão da Terra tinha de sujar a Lua.
- Mas eu não venho da Terra, disse-me o cão.
- És um cão do universo?, perguntei-lhe.
Ele riu-se. Era a primeira vez que eu via um cão a rir. E então recomecei a
história: era uma vez... a primeira vez que eu via um cão a rir.
- É verdade que os filósofos também se riem?
O cão disse-me:
- Aqui tens a prova.
Também nunca tinha visto um cão ensinar a pensar. Quando se vê um
cão, só pensamos que estamos a ver um cão. Dizemos coisas banais: estende a
pata; vai buscar o osso; não ladres para o carteiro. O cão deve pensar que
somos parvos, ou romancistas russos. Estende-nos a pata; corre até ao fundo
da sala para nos trazer o osso, que voltamos a atirar para o fundo da sala para
onde ele volta a correr para nos trazer de volta o osso; e só no que diz respeito
ao carteiro, não nos obedece, e continua a ladrar.
O problema do carteiro é que ele nunca dá nada ao cão. Também,
ninguém escreve a um cão. Mas se cada um de nós escrevesse ao seu cão, e o
carteiro lhe desse a carta, o cão ficaria satisfeito. Abocanhava a carta, ia para o
seu canto, e enquanto mordia o papel já não ladrava ao carteiro.
- Mas o que hei-de eu escrever a um cão?, pensei.
O problema, quando se escreve a um cão, é que ele não nos responde. A
não ser que seja o cão que está na Lua. Esse, sei eu de fonte segura que sabe
ler e escrever. O problema é este: como mandar uma carta para a Lua? Já a
ideia de escrever para a Lua é complicada; e quando se acrescenta a isso
escrever para o cão que está na Lua, torna-se impossível.
Mas não há nada impossível quando se tem pela frente um cão que fala;
pior ainda quando esse cão que fala é um cão filósofo. No entanto, pensei, se
nós conseguimos ladrar, como os cães, por que é que os cães não hão-de falar,
como nós? Esta ideia fez-me pensar.
- Para isso é que servem as ideias, disse-me o cão.
E eu fiquei a pensar:
- Mas nós pensamos porque temos ideias, ou temos ideias porque
pensamos?
- Estás a ficar filósofo, disse-me o cão.
Era uma vez um cão que me obrigou a pensar. Também não é todos os
dias que se tem pela frente um cão que fala; nem são todos os cães que vêm da
Lua, como este cão. Às vezes, porém, tropeçamos na Terra com coisas que vêm
da Lua. Conheço pessoas que já tropeçaram no luar; pessoas que
começaram assim a namorar. Também conheço pessoas que só olham para o
chão, para não terem de ver a Lua. Têm medo que a dona do Universo lhes
grite:
- Quem é que sujou a minha Lua?
- Não fui eu, foi o cão!
Mas a dona do Universo não acredita neles; e mete-lhes nas mãos uma
vassoura para eles varrerem a Lua da cabeça. Por isso é que andam de cabeça
em baixo, com o peso da Lua dentro deles, e a vassoura às voltas, sem limpar
nada, porque nenhuma vassoura na Terra lhes consegue limpar a Lua da
cabeça.
Por isso é que é importante ouvir o que um cão tem para nos dizer. Não é
todos os dias que um cão vem ter connosco e nos pergunta quem pôs os peixes
no mar? Sobre isto, cada um pode dar as suas opiniões; mas ninguém as dá a
um cão.
- E se ele não gosta, e morde?, dizem uns.
- E se ele não morde, e gosta?, suspiram outros.
Se uma opinião fosse como um osso, o cão podia agarrá-la, roê-la, e
chupá-la até ao tutano.
- O que está a fazer aquele cão?, pergunta-se.
- Está às voltas com uma opinião.
Quando isso acontece, o melhor é deixá-lo. O pior que pode acontecer é o
cão largar a sua opinião; e ficamos com ela, sem saber o que fazer. Ele olha-nos, à espera de uma festa, ou de um biscoito, ou que lhe abramos a porta da
rua. Mas a dona do universo está à espera disso. Ela não gosta que os cães
tenham opiniões, e menos ainda que as roam, que as chupem até ao tutano, e
que as larguem da boca para que as apanhemos. O problema com os cães que
falam é que não conseguem engolir a sua opinião. E quando a dizem, temos de
a aceitar.
Por isso, era uma vez um cão que me deu a opinião dele. E eu abri-lhe a
porta. Ele saiu. Estava uma noite de Lua cheia.
- Quem é que sujou a minha Lua?, gritou a dona do universo.
E o cão ladrou-lhe. Não se pode gritar a um cão que acabou de nos dar a
sua opinião. A dona do universo zangou-se, pôs uma vassoura às costas do cão,
e pô-lo na Lua.
- Agora vais limpar a minha Lua.
E é lá que ele continua, arrastando a vassoura, à espera que a dona do
universo veja a Lua arrumada e o mande de volta para a Terra. Mas um cão não
pode falar, quando está na Lua. Por isso, todos os cães da Terra se calam, com
medo que a dona do universo lhes ponha uma vassoura às costas e os mande a
todos para a Lua. O que eles fazem, à noite, é ladrar à Lua, para que o cão que
fala os possa ouvir, e nos volte a dar a sua opinião.
Era uma vez um cão que só se chamava cão. E quando isso acontece,
era uma vez... era uma vez...
Tiago Monteiro, 5ºD
1 comentário:
Parabéns, Tiago...Estás-me a sair um grande filósofo!
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