Há muitos anos, havia um homem que roubava palavras. As nossas melhores palavras. Metia-as, cuidadosamente, num saco de linho e desaparecia. Para ser sincero, na nossa aldeia, que uma sebe de montes abraça, nunca ninguém viu o rosto do homem e ninguém lhe sabia o nome. Mas, pela manhã, as pessoas acordavam pobres. Pobres, sempre mais pobres e tristes.
As palavras, nesse tempo, eram de ouro.
O homem introduzia uma palhinha invisível no nosso silêncio e apartava as palavras. Da mesma arte se servia para desencaminhar palavras dos livros e dos jornais. Não as roubava todas, porque isso daria muito nas vistas. Ele aprisionava as palavras alegres, as mais luminosas, as nossas melhores palavras — e nós sobrevivíamos no meio de palavras sem sabor.
Palavra insípida é como fruto desconhecido do sol.
Cada dia vivido, menos palavras havia para agasalhar a tristeza. Era como se a mãe quisesse fazer um pão-de-ló e não houvesse açúcar; como se nós fôssemos abelhas proibidas de produzir mel.
Impedidos das palavras luminosas, emagrecia a imaginação: e assim seria impossível pedalar até ao fim dos sonhos. O sonho, na nossa aldeia, era veludo que enxugava a melancolia.
Nós conhecíamos o local onde o homem abrigava o saco da alegria. Ficava num bosque cerrado, nem o sol podia furar a copa das árvores. O bosque estava povoado de cogumelos: engordavam de sombra e de humidade. Alguns cogumelos atingiam a grandeza das árvores!
Nenhum de nós podia ir ao bosque. Entre outras palavras, ele roubou-nos a coragem. Também correu a notícia de que os cogumelos seriam venenosos. Todos os cogumelos, os pequenos — do tamanho de guarda-chuva aberto — e os grandes. Bastaria olhá-los e perderíamos a vida!
Com o andar do tempo, a nossa tristeza transformou-se em nuvem. E essa nuvem, de um momento para o outro, rasurou o sol em quase metade da aldeia: essa parte do povoado ficou sombria como o bosque.
Todos os dias, porque o silêncio era tecido de palavras sem sabor, a nuvem estendia o domínio. Temeu-se uma praga venenosa de cogumelos! Para afastar a maldição, pela manhã, queimávamos rama verde de pinheiro em redor das casas.
Os cogumelos, enfim, não levantaram a cabeça. Mas a nuvem, que medrava com o fumo da rama verde, tinha fome, imensa fome de claridade. Grande parte da aldeia, a dada altura, era noite. A calamidade! A calamidade, provocada pelo musgo verde, muito verde deu o primeiro sinal.
«Estranha doença!», disseram os velhos.
No rosto das crianças da aldeia despontou estranha barba, muito verde e húmida.
Testámos todos os xaropes caseiros e outras mezinhas da imaginação do povo Nada. Nada estorvava o avanço do musgo no rosto das crianças. E também de pouco valia ir ao barbeiro. Ele, com a costas da navalha, limpava a nossa cara, mas, na manhã seguinte, a barba irrompia com mais fulgor.
Os velhos disseram: «Ninguém pode ser homem antes do tempo, é contra as leis da natureza!»
Mandaram chamar o médico.
Não escondeu o espanto, o médico que veio de longe. Primeiro, por ver o dia e a noite no mesmo sítio e à mesma hora. Depois a surpresa multiplicou-se à medida que lhe surgiam meninos barbados e tristes. Apenas observou, com minúcia, uma criança, e achou remédio para rebater o mal de todas as outras. Abriu a pasta de couro, retirou um caderno e a caneta. Escreveu rápido. Entregou a receita, não aceitou o dinheiro da consulta. E partiu a toda a velocidade, como se a nossa doença alastrasse por contágio.
O ladrão de palavras estava junto de nós. Ninguém o viu, mas ele esteve sempre no meio de nós. Adivinhámos a sua presença pelas palavras que a palhinha invisível havia sorvido da receita:
«A sombra misturou-se com a tristeza. Só um , colher vezes dia
, , silêncio.»
A nuvem, nesse instante, cresceu largos metros: porque todos nós, velhos e novos, sem saber o que o médico nos havia indicado, ficámos ainda mais tristes. Mas a última palavra da receita (que o Ladrão terá achado de pouco valor para guardar no saco de linho), abria uma pista. Se descobríssemos o verbo que precedia silêncio, seria desvendado o mistério.
O automóvel do médico havia já dobrado o monte, e foi então, de forma inesperada, que se ouviu o grito:
«É preciso prender o ladrão de palavras!»
O grito atravessou a aldeia, acordou os cães do lado onde era noite, assustou as galinhas da parte onde era dia.
Uma mulher ergueu a voz e os braços na direcção da nuvem: afrontou (afrontar, o verbo que procurávamos) o silêncio. De repente, outros habitantes resgataram a coragem, a palavra coragem, adormecida no bosque dos cogumelos!
A nuvem estremeceu, depois, como bicho do monte, fugiu espavorida. Num instante, o céu ficou leve, azul, imensamente azul. E sol, generoso, bebeu a nossa melancolia.
Em grande festa, o povo partiu à descoberta do bosque. Primeira surpresa: não havia cogumelos gigantes, muito menos venenosos. Mas o saco de linho estava lá, ao pé de um velho medronheiro. Abrimos o saco e o saco nada tinha!
Nesse dia luminoso, verdadeiramente luminoso, no saco de linho vazio prendemos o ladrão da alegria. Ele, afinal, era uma palavra — a palavra medo.
As palavras, nesse tempo, eram de ouro.
O homem introduzia uma palhinha invisível no nosso silêncio e apartava as palavras. Da mesma arte se servia para desencaminhar palavras dos livros e dos jornais. Não as roubava todas, porque isso daria muito nas vistas. Ele aprisionava as palavras alegres, as mais luminosas, as nossas melhores palavras — e nós sobrevivíamos no meio de palavras sem sabor.
Palavra insípida é como fruto desconhecido do sol.
Cada dia vivido, menos palavras havia para agasalhar a tristeza. Era como se a mãe quisesse fazer um pão-de-ló e não houvesse açúcar; como se nós fôssemos abelhas proibidas de produzir mel.
Impedidos das palavras luminosas, emagrecia a imaginação: e assim seria impossível pedalar até ao fim dos sonhos. O sonho, na nossa aldeia, era veludo que enxugava a melancolia.
Nós conhecíamos o local onde o homem abrigava o saco da alegria. Ficava num bosque cerrado, nem o sol podia furar a copa das árvores. O bosque estava povoado de cogumelos: engordavam de sombra e de humidade. Alguns cogumelos atingiam a grandeza das árvores!
Nenhum de nós podia ir ao bosque. Entre outras palavras, ele roubou-nos a coragem. Também correu a notícia de que os cogumelos seriam venenosos. Todos os cogumelos, os pequenos — do tamanho de guarda-chuva aberto — e os grandes. Bastaria olhá-los e perderíamos a vida!
Com o andar do tempo, a nossa tristeza transformou-se em nuvem. E essa nuvem, de um momento para o outro, rasurou o sol em quase metade da aldeia: essa parte do povoado ficou sombria como o bosque.
Todos os dias, porque o silêncio era tecido de palavras sem sabor, a nuvem estendia o domínio. Temeu-se uma praga venenosa de cogumelos! Para afastar a maldição, pela manhã, queimávamos rama verde de pinheiro em redor das casas.
Os cogumelos, enfim, não levantaram a cabeça. Mas a nuvem, que medrava com o fumo da rama verde, tinha fome, imensa fome de claridade. Grande parte da aldeia, a dada altura, era noite. A calamidade! A calamidade, provocada pelo musgo verde, muito verde deu o primeiro sinal.
«Estranha doença!», disseram os velhos.
No rosto das crianças da aldeia despontou estranha barba, muito verde e húmida.
Testámos todos os xaropes caseiros e outras mezinhas da imaginação do povo Nada. Nada estorvava o avanço do musgo no rosto das crianças. E também de pouco valia ir ao barbeiro. Ele, com a costas da navalha, limpava a nossa cara, mas, na manhã seguinte, a barba irrompia com mais fulgor.
Os velhos disseram: «Ninguém pode ser homem antes do tempo, é contra as leis da natureza!»
Mandaram chamar o médico.
Não escondeu o espanto, o médico que veio de longe. Primeiro, por ver o dia e a noite no mesmo sítio e à mesma hora. Depois a surpresa multiplicou-se à medida que lhe surgiam meninos barbados e tristes. Apenas observou, com minúcia, uma criança, e achou remédio para rebater o mal de todas as outras. Abriu a pasta de couro, retirou um caderno e a caneta. Escreveu rápido. Entregou a receita, não aceitou o dinheiro da consulta. E partiu a toda a velocidade, como se a nossa doença alastrasse por contágio.
O ladrão de palavras estava junto de nós. Ninguém o viu, mas ele esteve sempre no meio de nós. Adivinhámos a sua presença pelas palavras que a palhinha invisível havia sorvido da receita:
«A sombra misturou-se com a tristeza. Só um , colher vezes dia
, , silêncio.»
A nuvem, nesse instante, cresceu largos metros: porque todos nós, velhos e novos, sem saber o que o médico nos havia indicado, ficámos ainda mais tristes. Mas a última palavra da receita (que o Ladrão terá achado de pouco valor para guardar no saco de linho), abria uma pista. Se descobríssemos o verbo que precedia silêncio, seria desvendado o mistério.
O automóvel do médico havia já dobrado o monte, e foi então, de forma inesperada, que se ouviu o grito:
«É preciso prender o ladrão de palavras!»
O grito atravessou a aldeia, acordou os cães do lado onde era noite, assustou as galinhas da parte onde era dia.
Uma mulher ergueu a voz e os braços na direcção da nuvem: afrontou (afrontar, o verbo que procurávamos) o silêncio. De repente, outros habitantes resgataram a coragem, a palavra coragem, adormecida no bosque dos cogumelos!
A nuvem estremeceu, depois, como bicho do monte, fugiu espavorida. Num instante, o céu ficou leve, azul, imensamente azul. E sol, generoso, bebeu a nossa melancolia.
Em grande festa, o povo partiu à descoberta do bosque. Primeira surpresa: não havia cogumelos gigantes, muito menos venenosos. Mas o saco de linho estava lá, ao pé de um velho medronheiro. Abrimos o saco e o saco nada tinha!
Nesse dia luminoso, verdadeiramente luminoso, no saco de linho vazio prendemos o ladrão da alegria. Ele, afinal, era uma palavra — a palavra medo.
Francisco Duarte Mangas
O ladrão de palavras
Lisboa, Editorial Caminho, 2006
3 comentários:
Lindo,lindo, amiga Isabel!
Parabéns pelo post.
Uma semana de muitas bênçãos prara todos aí!
1001 Bjssss
Olá, Isabel.
Passei para deixar um beijo em ti e nas princesas.
Beijo
Para ti uma histórinha minha.
Uma pequena história inacabada...
A folha em branco pediu uma alegria para menina que deitada estava ao lado do caderno que acabará de ganhar, então a pequena pegou sua caneta e lhe deu uma poesia, palavras com ou sem rima:
“onde moram os sonhos?
Nas asas da borboleta?
Nos meus olhos fechados?
Onde mora a saudade?
Em uma casa no meio do nada?
Na vida adulta que custará há chegar?
Ou em um primeiro beijo roubado?”
Insatisfeita a folha que agora tinha todas as perguntas da garotinha pediu uma ilusão...
Então a menina desenhou flores, borboletas, um dia de sol com uma chuva fininha para refrescar.
A folha agora era a primeira página de um possível livreto, mas, tinha o avesso e pediu...
- Quero um amor!
A menina desenhou um enorme coração, contudo, a página entristeceu e disse:
- Do que me adianta um coração vazio tenho que ter um sentimento dentro dele ou vários...
Pensativa a autora pensou em várias palavras até amor, porém, para ele chegar e ficar se lembrou que a página precisa ter duas expectativas:
E escreveu “futuro e esperança” e depressa foi até seu armário passou um batom rosa e beijou a página. Fechou seu caderno vestiu-se de fada e foi passear voando pela história que estava apenas começando.
Olá,linda semana, bjos
O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor.
E isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora de despertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé.Romanos.
O AMOR AO PRÓXIMO -
O amor não é Eros, que sempre cobiça, mas Ágape, que jamais acabará.
A novidade, a originalidade do amor é ele não participar do círculo vicioso
que vai do mal ao mal e da reação à revolução.
O amor é “justiça equalizadora eterna” (Kierkegaard),
porque a ninguém justifica segundo o próprio desejo;
O amor edifica a comunidade porque unicamente procura comunhão;
O amor nada espera porque já atingiu o alvo;
nada procura, porque já encontrou;nada quer porquanto já realizou;
nada pergunta, pois já sabe;
não luta porque já venceu.
O amor não contradiz e, por isso, não pode ser refutado;
não concorre e, portanto, não é vencido;
não busca decisão e, conseqüentemente, ele próprio é a decisão.
O amor destrói os ídolos
porque não cria outros.
Karl Barth
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