Em tempos muito antigos viviam numa aldeia do Japão um marido e uma mulher que se amavam profundamente e eram profundamente felizes.
Tinham uma filha pequenina muito bonita que era o retrato vivo da sua mãe. Em ambas se viam os mesmos olhos escuros, talhados em amêndoa, a mesma pele clara e transparente, o mesmo nariz pequeno e redondo e o mesmo cabelo preto, liso, abundante e lustroso.
Moravam os três numa casa muito limpa e bonita. O chão estava coberto por esteiras de palha e os quartos eram divididos por biombos de correr forrados de papel. No lado Sul e no lado Poente da casa corria uma varanda de madeira coberta. Em redor havia um jardim maravilhoso onde entre rochedos, musgos e lanternas de pedra cresciam pinheiros, bambus, cerejeiras, macieiras, azáleas, cameleiras, lírios e crisântemos. Por entre as árvores e flores corria um pequenino regato saltando de pedra em pedra e atravessado por uma ponte de madeira. Num pilar da varanda trepava uma glicínea que na Primavera se enchia de longos cachos lilases que entonteciam o ar com o seu perfume. E aquele homem e aquela mulher nada mais desejavam senão viverem, eles e a criança, os três juntos no sossego daquela casa e na beleza daquele jardim.
Mas um dia o pai, que era negociante de chá, teve que ir a Kioto, capital do Japão, tratar dos seus negócios.
A mulher afligiu-se muito, pois as viagens, naquele tempo, eram difíceis, demoradas e perigosas.Ela temia que o seu marido fosse asssaltado por ladrões, ou que adoecesse, sozinho numa terra desconhecida, ou que se perdesse no caminho, pois Kioto era muito longe.
O marido sossegou-a, explicou que não viajaria sozinho mas em companhia de outros negociantes das redondezas, disse-lhe que se demoraria o mínimo tempo possível e prometeu que traria de Kioto muitos e maravilhosos presentes.
E, daí a poucos dias, despediu-se da mulher e da filha e partiu de manhã cedo.
***
Quatro meses aquele homem esteve ausente.
A mulher ia contando as semanas e os dias um a um. Mas já as pétalas das flores de cerejeira tinham caído, já os cachos de glicínias tinham murchado, já o verão passara, já a lua de Outono tinha iluminado os montes longínquos. Já no céu cinzento tinham começado a passar os bandos de patos selvagens.
Até que um certo dia, ao fim da tarde, quando ela estava a acender as lâmpadas, bateu à porta um vizinho, que anunciou:
- Do alto do monte vi ao longe o teu marido.
Depressa a mulher desenrolou e alisou os seus longos cabelos lustrosos, penteou-os em grossos rolos e chinós, enfeitou-os com os seus mais belos ganchos, vestiu o seu mais belo kimono de seda, e chamando a filha, vestiu-a também com a sua melhor roupa e alisou-lhe sob a testa a franja escura. Enquanto se penteavam e vestiam uma a outra, riam muito e batiam palmas de alegria.
E quando o homem chegou ao limiar da porta, a mãe e a filha já o esperavam e ambas se inclinaram para o receber.
***
Grande foi a alegria dos três por se verem outra vez reunidos.
O homem deu-lhes os presentes que trazia: rolos de tecidos de seda e de algodão e leques e ganchos de cabelo esculpidos para a mulher, bolas e bonecas para a filha.
Depois, sentados sobre a esteira, à volta de uma mesa pequena e baixa jantaram os três, rindo e conversando, à doce luz da lanterna de papel.
Quando acabaram de comer, a filha foi-se deitar e o marido e a mulher ficaram os dois sozinhos.
- Trouxe-te ainda outro presente – disse-lhe o marido. – É uma grande surpresa.
- O que é? – perguntou-lhe a mulher, cheia de curiosidade.
- É uma coisa desconhecida nestas paragens, mas em Kioto e nas grandes cidades cada mulher tem o seu. Chama-se um espelho.
E o homem abriu uma caixa de charão e entregou à mulher uma placa de vidro rodeada de madeira.
A mulher, espantada, ficou muda, olhando para o espelho.
- Conta o que vês – pediu o marido.
- Vejo – respondeu ela – uma jovem mulher que é a mulher mais bela que jamais vi na minha vida. E tem – como é curioso – um kimono azul igual ao meu.
- Pateta – disse o marido rindo – tu vês é a tua própria imagem. Pois o espelho, como a água do lago, mas com maior perfeição, reflecte as coisas. Tu própria és a mulher que te sorri.
- Ah! – exclamou a mulher. – É um retrato vivo!
E tão maravilhada ficou com o espelho que durante muitos dias não pensou noutra coisa. Sempre que estava sozinha, abria a caixa de charão, tirava o espelho e ajoelhada no chão sobre as esteiras contemplava a sua imagem. Não se cansava de admirar os seus olhos em amêndoa, o oval da sua face, a sua boca cor de coral e os seus cabelos negros e espessos e brilhantes.
Então, aflita, pôs muito depressa o espelho na caixa, guardou-o em lugar seguro e nunca mais voltou a ver-se nele.
***
Os anos foram correndo muito devagar e, no sossego daquela casa e na beleza daquele jardim, o homem, a mulher e a criança viviam os três juntos e felizes.
À medida que a filha ia crescendo ia-se tornando cada vez mais parecida com a mãe. Mas, quando ela tinha já quinze anos a mãe adoeceu. Vieram médicos, bonzos e exorcistas, mas nenhum conseguiu encontrar remédio que a curasse.
Então a mãe compreendeu que ia morrer e lembrou-se do espelho. Ela temia que depois da sua morte a filha o encontrasse e que – como a ela própria lhe acontecera tantos anos antes – se orgulhasse descobrindo a sua beleza. Temia que a filha, tão jovem, se tornasse uma tonta, fútil e vaidosa por causa da sua imagem.
Chamou a filha, ensinou-lhe o lugar onde guardava a caixa com o espelho e pediu-lhe que lha trouxesse.
Quando a rapariga voltou, a mãe mandou-a colocar a caixa a seu lado e disse:
- Vou morrer. Mas depois da minha morte hás-de voltar a ver-me sempre que quiseres. Deixo-te esta caixa. Dentro dela está o meu retrato vivo. Chama-se um espelho. Agora guarda a caixa aqui. Mas depois da minha morte, leva-a para o teu quarto. E quando quiseres ver-me abre a caixa e tira para fora o espelho. Eu te aparecerei nele e te sorrirei quando tu me sorrires. E assim estarei sempre contigo e todos os dias me lembrarás. Faz isto em segredo. É um segredo entre nós as duas.
A mãe morreu passado pouco tempo e a casa ficou muito silenciosa e vazia!
Depois de muito ter chorado e agarrado à filha o pai retirou-se para meditar.
Então a rapariga – como prometera – foi buscar a caixa de charão e levou-a para o seu quarto. Ajoelhou-se na esteira do quarto, abriu a caixa, tirou para fora o espelho e olhou.
E – como lhe fora prometido – o rosto da mãe surgiu em sua frente. Mas não era a mãe pálida e cansada dos últimos tempos: era a jovem e linda mãe da sua infância, com a pele transparente e a boca de coral e os cabelos negros e lustrosos. Ela sorriu, a mãe sorriu-lhe e assim estiveram as duas longo tempo.
E, daí em diante, todas as noites, à hora do silêncio e do recolhimento, a rapariga abria a caixa e ajoelhada na esteira contemplava o rosto doce e maravilhoso.
Numa noite primaveril o pai, quando passeava na varanda, passou ao lado do quarto da filha. E viu, dentro do quarto iluminado, a rapariguinha a falar e a sorrir em frente do espelho.
- Que coisa tão esquisita! – pensou o homem muito espantado.
Entrou no quarto e perguntou à filha o que estava a fazer.
- Meu pai – disse ela – estou a falar com a minha mãe. A minha mãe deixou-me um retrato vivo que se chama espelho.
E contou ao pai como a mãe lhe dera a caixa. E acrescentou:
- Todas as noites, a minha mãe me vem ver. Mas não vem pálida e doente como era ultimamente. Vem jovem e bela; bela como era no tempo da minha infância.
Quando acabou de falar a rapariga viu duas lágrimas a correr pela cara cansada do pai.
Pois ele chorava maravilhado por tão belo exemplo de obediência, de amor e de piedade filial.